Tenho gosto por trilhas, sabe. Talvez porque em certos lugares só se chega caminhando por elas. E você é jogado em paisagens de beleza deslumbrante, como um presente da Natureza por ter caminhado tanto. Certa vez dormia, ou tentava dormir, numa cabana de madeira nos Himalaias. Soprava fortíssimas rajadas de vento lá fora. Eram graus negativos dentro do quarto, que balançava como uma gangorra, tamanha a força do vento. Uma parte desse vento entrava pelas frestas daquele sagrado B&B nepalês. Na noite anterior uma nevasca havia deixado uma grossa camada de neve até onde a vista alcançava. Naquela altitude próxima a quatro mil metros, apesar do frio extremo, da falta de ar e do coração acelerado, sentia uma ótima sensação de bem estar, de estar abrigado. Tinha sido um dia muito difícil naquele parque nacional na divisa com o Tibet. Para os males da altitude só havia um remédio: descer. Mas uma trilha de neve fofa apontava o caminho pra cima. Resolvi continuar a marcha o dia inteiro, exausto, até enfim encontrar a sonhada cabana isolada no alto da cordilheira. Oasis. Aprendi a secar os sapatos na lareira, jantei arroz quentinho com ovo de gema mole e proseei causos de montanha com os locais. A ordem de comando para o dia seguinte era clara: com tanta neve o remédio era voltar para o vilarejo base. Dormi. Na manhã seguinte o anfitrião da cabana comentava com naturalidade sobre os “bons terremotos” daquela madrugada, como alguém que comenta da chuva forte. Achei plausível a explicação para o quarto chacoalhante. Depois fiquei pensando, a ideia de ter os pés firmes no chão é conceitual. Para quem vive numa montanha como aquela a sensação de estar flutuando, como num mar de terra e pedra, passa a ser parte de sua cultura. A Terra também caminha.