Este é o relato da primeira vez que caminhei pelo Circuito Peregrino, em Delfim Moreira-MG, no alto da Serra da Mantiqueira, na companhia do meu cachorro, o Tutuco – mas com apoio via satélite do meu amigo Marcos.
AINDA DE CARRO: O asfalto se despede de nossa jornada a partir de um grande restaurante chamado Porteira Grill Alto da Serra. A estradinha rural aos fundos deste restaurante passa pelas últimas casinhas do bairro Barreira. Cerca de dois mil metros de trajeto fora-de-estrada e avisto um pequeno altar de Nossa Senhora Aparecida e logo adiante uma linda cachoeirinha. Pequena em volume d’água, mas grande em altura. A cachoeira chama Areia Branca, ela é nascente do rio que lá em baixo vira ponte sob o asfalto, de onde vim. Bem ao lado vejo as cicatrizes de uma antiga extração de areia, claro, daí o nome da cachoeira – que felizmente a mineração deixou ilesa. À medida que a quilometragem vai passando as plantações de eucalipto vão dando lugar à mata nativa. Quebra-molas são nascentes e semáforos são mirações de montanhas ao longe, inclusive o Pico dos Marins. Noto que não é uma travessia para todo carro. Aqui jipe sobe sorrindo e, no caso, uno way, sobe de semblante ofegante. Ao fim de cerca de 10 quilômetros chego a uma ponte e a uma subsequente encruzilhada. As placas indicam: à esquerda Ruínas, à direita Campos do Jordão. Esquerda volvi e menos de mil metros depois aporto nas Ruínas do Sanatório. Foram exatos 38 minutos do asfalto até aqui. Esta estrada se mostrou muito especial, muito diferente das estradas rurais que estou acostumado a passear no sul de Minas: não parece que logo mais a frente encontrarei um simpático bairro rural com igrejinha, venda e barzinho. E realmente não há. É a estrada do isolamento.
A PÉ: Estaciono, dois dedos de prosa com o simpático Sr. Rubens, o guardião das Ruínas do Sanatório. O lugar foi construído em 1906 para tratar doentes respiratórios. Naquela época não havia cura para tuberculose e o remédio era o isolamento nas montanhas, onde o ar puro daria alguma chance de vida para os enfermos. Aqui muitos chegaram a se curar. Uma história semelhante à vizinha Campos do Jordão. Já o Tutuco, meu cachorro, não quis saber de história, logo salta do carro e berra com os outros vinte cachorros do Sr. Rubens. Mochila nas costas, botas encadarçadas e finalmente começo a andança. Meu cão-guia, lá na frente saltitante, vira para mim e diz com os olhos: “Agora sim, papai, é assim que gosto de viajar: livre!”, fazendo referência ao desconfortável sacolejo do banco detrás do carro. Lindos bosques de pinheiros, araucárias e relvas de altitude deixam claro que este lugar é no mínimo fora do comum. O dono do Tutuco olha pro céu azul com nuvens rarefeitas e pensa: “Uau, que lindo dia para uma longa caminhada!”. Existe uma adrenalina nos primeiros passos que não sei explicar. Mais adiante, não muito distante, está a primeira curva à direita – que sai da estrada que iria para o Pico do Ataque, uma montanha de fácil localização por ser a única da região com antenas em seu topo. A partir daqui carro não passa, o que mais uma vez me causa uma sensação que não sei explicar. Pertinho dali está um balanço abraçado por dois pinheiros na beira de um despenhadeiro, que é chamado de Mirante do Balanço Infinito.
A vista estava comprometida por uma neblina fraca, o que curiosamente dá uma real sensação de balançar no infinito. Tem que ter coragem, pois não dá pra ver onde seus pés poderiam eventualmente repousar em queda. Algumas bolachas e meia hora de fotos depois e já estou pronto para seguir viagem. Chamo o Tutuco por uma dúzia de vezes, mas ele não atende e as cordas vocais de seu dono já começam a timbrar preocupadas. Alguns minutos atrás ele estava brincando na beira do infinito, mas já não escutava seus passos. Demora um par de minutos até seu focinho finalmente atender aos chamado de seu dono. Ufa! Que susto! Dali em diante decidi manter o escoteiro na linha. Pouca trilha se passa até chegarmos aos pés do Pico do Cabrito. A subida tem um grau de inclinação que faz seu nome ser totalmente justo. É preciso ser um cabrito para escalar o declive. Não esqueceria duas coisas antes de sair de casa: bota antiderrapante e equilíbrio.
Uma enorme rampa de barro ótima para escorregar sem saber de onde vieram tantos hematomas. Não diria perigoso, diria desafiador. É um morro judiado pelas motocross, coitado. No passado foi assolado por motoqueiros em busca de adrenalina às custas de erosão nas veias da terra. Não sou contra qualquer esporte, mas as marcas na natureza revelam a consciência de alguns de seus praticantes. Felizmente não passam mais por aqui. A subida é até curta, mas é sofrida. No topo do Cabrito uma vista espetacular de 360 graus. O pico só tem 1.840 metros de altitude, um verdadeiro pirralho das montanhas da Serra da Mantiqueira. Porém, ele está localizado justo na borda entre a serra e o Vale do Paraíba. Consequentemente a vista para o vale é tão ampla quanto a quantidade de cidades por lá: Aparecida, Guaratinguetá, Cachoeira Paulista e um pedacinho de Pindamonhangaba são algumas das cidades que se enxerga daqui. Do Cabrito também se avista aonde nossos passos passarão. Uma miragem do desconhecido. O visual das montanhas nestas paragens tem nome e sobrenome: “muito prazer, sou o Sr. Campos das Terras Altas da Mantiqueira da Silva Silvestre”, assim ele se apresenta com o sotaque de assobio do vento, frio mas simpático. Se não fosse o aceiro da divisa dos Estados de Minas com São Paulo, que faço de trilha, eu diria que estas bandas ainda não foram apresentadas aos insólitos seres humanos. Um trecho de trilha muito inusitado. De uma breve mata fechada se descortina alguns quase mirantes. De repente numa crista e, de súbito, numa floresta. Aliás, aqui uma pausa. O Tutuco, meu guia, marchava na frente como quem diz “conheço tudo como a palma da minha pata”. Mas na verdade surgiu uma encruzilhada e nem ele sabia me guiar. Justamente no início do que passei a chamar de ‘Floresta da Perdição’. Ótimo momento para batizar um lugar é quando não faço ideia para onde ir. Mas, além do cão-guia, não havia ninguém para rir das minhas ironias. Então, engulo o choro e decido seguir pela direita. Surpreendentemente uma linda trilha de visada nula pro céu se mostrou altamente confiável. Nem mesmo Alice no país das maravilhas poderia se perder aqui. Fui obrigado a rebatizar a bendita para ‘Floresta da Salvação’. O caminho me cativou. Eventualmente um bambuzinho me abraçava, mas era só carência, só um caminho esquecido. Aqui foi – ou é – um aceiro de manutenção de divisas, onde só se passa a pé, a cavalo, de bike ou, oxalá não mais, de moto. Caminhar faz a gente refletir nas coisas. Eu espiava o mapa e reparava que já havia atravessado a divisa dos Estados pelo menos umas dez vezes. Ora em Minas ora em São Paulo. Um caminho hoje tão sem uso, mas que já serviu para essa divisão. Divisões políticas, estas igualmente tão sem uso. Fronteiras são babaquices, pensei. Bom, ainda bem que só havia o Tutuco de testemunha das minhas lamúrias. De volta à trilha, por um instante avisto ao longe a primeira das torres de alta tensão que sabia que precisava chegar. Preocupei, havia um vale enorme e se essa trilha não me levasse até lá eu teria que me aventurar naquela selva intransponível. De uma trilha de conto de fadas para uma cena de reality show de sobrevivência? Não, por favor, não – é muito contraste para nós, né Tutuco? Felizmente a recém batizada Floresta fez jus ao novo nome e nos ejetou numa estrada de manutenção das torres de Furnas. Ao mesmo tempo que tive a ótima sensação de “estou salvo”, tive aquela conhecida sensação que não sei explicar, porém ao revés: “aqui já passa carro…” Ok, não é qualquer carro – somente um jipe dos bons teria coragem. Logo me conformo com o novo caminho e acho muito bom ele existir. A selva antes intransponível se abriu em caminho amigável e farto em curvas para aliviar os aclives. Logo uma ponte de madeira faz forte xuá, volumosa água invisível. Já começava a regrar a água do cantil e aquele ponto de água me pareceu importante. Porém, a descida da ponte sugeriria risco de queda e exposição à vida selvagem, então decidi que da próxima vez, como regra, traria uma cordinha para amarrar ao cantil e captar água. Segui com pouca água mesmo. Pouco mais a frente outra ponte de igual altura inacessível ao líquido precioso. O Tutuco, por nossa sorte, encontrava facilmente pequenas poças de água de brejo e matava a sede. Decidi esperar uma fonte acessível a frente. O caminho segue úmido, mesmo que não fossem dias de chuva. A estrada com relva nos tornozelos não deixava o caminho exatamente pavimentado. Num pulo de arregalar os olhos recuei o passo no ar. Uma cobra!!! O Tutuco, incólume, já estava lá na frente enquanto minha adrenalina, que me fez brecar, apressava-se na busca de um pau para sondar a serpente imóvel. Cutuquei, estava mole ainda, mas nenhuma cobra viva brincaria de estátua daquele jeito. Ela estava morta. Mas o susto vivinho-da-silva. Deixei a desfalecida para trás e quis sair daquela selva úmida o quanto antes. Apesar das botas de cano alto e do rádio para contato com a civilização em caso de emergência, minhas anteninhas da sensatez foram bastante críticas àquela instalação artística da natureza. Pensei nos predadores empalhados nas salas de estar pelo mundo. Seria uma forma de encarar o temível cara a cara, mesmo que morto? Temi pela inocência do Tutuco, que continuava sorridente e saltitante bem a frente de qualquer perigo. Mais adiante a selva úmida vira novamente campos de altitude, secos e com visada pros céus dos satélites. Aquela torre de alta tensão, que avistara ao longe, antes intocável, agora estendia seus arames enormes acima da minha cabeça. Seriam varais para secar roupas de gigantes? Não, jovem gafanhoto, não é hora de devaneios – aqui na torre temos sinal de telefone móvel. Hora de mandar boas notícias pro meu amigo Marcos. “Afinal a floresta é um paraíso. Tudo tranquilo!”, em seguida a foto da cobra morta atesta a tranquilidade da trilha. Alguns minutos depois ele me confirma que se trata de uma urutu-cruzeiro. Venenosa, claro. De agora em diante o caminho das torres é aberto e seco. Se por um lado meu olhar critica as torres por poluírem a vista das montanhas, por outro sou conivente e usufruo dos caminhos feitos para elas. Quando chego perto de uma delas ouço o forte ruído de raios de alta tensão, quase como se ouvisse o sugar de cidades famintas por energia elétrica. Consigo ver por onde piso e vou esquecendo da urutu. Agora a fome e a recém programada parada para almoço na próxima atração turística tomam toda minha atenção. Nos encontros de vários caminhos avisto o restaurante do dia: o Alto da Vista Alegre, um irmão do Pico do Cabrito, outro pirralho da Mantiqueira, mas que fica na beira do mar de montanhas e por isso é agraciado com uma vista espetacular do Vale do Paraíba.
E as desconhecidas montanhas de Delfim Moreira ao fundo, inclusive a bússola do Pico do Ataque e suas antenas. Eis uma merecida parada para almoço. Aqui o Tutuco deita e aguarda seu prato: um daqueles pacotinhos de molho de carne para mimar pets. Ele devora tudo e deita com o linguão para fora. Eu preparo um chimarrão quente, servido ao estilo argentino. Um sanduíche de queijo mineiro com mostarda faz carícias em meu estômago. Já passam de duas da tarde. Os galhos das trilhas esquecidas me atrasaram. Mas estou tranquilo. Daqui em diante estarei em território peregrino. A partir daqui sigo na trilha dos romeiros do caminho do Frei Galvão. Um simpático oratório marca o ponto da trilha onde os romeiros descem da Mantiqueira para o bairro Pilões de Guaratinguetá e engargantam em Aparecida. Eu permaneço no templo da montanha – e que templo lindo, Nossa Senhora!
Logo encontro a tão esperada água potável de fácil acesso. E quanta água! O primeiro riacho é de chorar de tão bonito. E mais um e mais outro riacho de águas ligeiras e sons de cachoeirinhas. Este trecho é um verdadeiro paraíso das águas. O Tutuco faz a festa e revesa entre atravessar os rios a nado e me seguir pelas pinguelas. O caminho, ainda transitável por jipe dá de cara com um portão abraçado por grossas correntes, as inscrições são claras para não ultrapassá-lo. Trata-se da Fazenda São Francisco dos Campos do Jordão – a Fazenda do Barão. Já foi aberta ao público mas hoje a família decidiu fechar. Cabe a nós respeitar a vontade de uma propriedade privada. Por isso a trilha dos romeiros volta a ser single track, vira à oeste e segue por um caminho que mais uma vez me surpreendeu pela beleza e variedade. Como reclamar de um portão fechado com um presentão destes? Impossível. Uma hora um bosque, outra hora uma encosta de morro com vistas incríveis – e por fim uma mata fechada. A trilha exclusiva dos romeiros acaba onde, novamente uma estrada de manutenção de torres aparece. Mais uma vez a mistura de sensações: “estou salvo porque aqui chega carro” versus “que pena, tão cedo para voltar às vias de rodagens”. Mesmo sabendo da possibilidade de companhia de pneumáticos, os nossos ainda estão bem longe daqui. Algumas piscinas de lamas diminuem a sensação de volta à civilização. Adiante na estrada avistamos um chalézinho de madeira em formato suíço com as inscrições Oca Chalé. A partir daqui um carro de passeio com um bom piloto chegaria para nos resgatar, se precisássemos, mas está tudo bem. Ainda temos força nas pernas. O mapa marca que já andamos por 15 quilômetros e faltam somente 5 até a volta às Ruínas. Perto daqui um totem de concreto marca a continuação do caminho dos romeiros. E o mapa marca uma cachoeira de nome Belíssima. Seriam 30 minutos de trilha para ir e voltar, porém decido seguir viagem pela estrada que leva à porteira da Fazenda do Barão. A noite se aproxima e uma chuva chega sem timidez. Mais a frente uma lâmpada marca a fazenda fechada ao público. Desligo a lanterna, e ando na frente da porteira camuflado pelo breu da noite e os passos camuflados pelas gotas da chuva. Não quero que o Tutuco acorde os cachorros dos caseiros. Melhor não incomodar e manter a média de encontrar um ser humano por dia. Passo no silêncio da noite, já de botas encharcadas pela chuva, mas de bom humor. Tutuco já me diz com o olhar: “Ué, papai, tá na hora de dormir e a gente continua caminhando”. Eu concordo, mas sei que faltam menos de dois quilômetros para a linha de chegada. A lanterna então aponta para a ponte da estrada que nos trouxe aqui. É um ciclo que se fecha. “Deixa comigo, aqui eu já conheço bem”, se gaba ainda mais meu cão-guia. Logo mais a sinfonia de latidos anuncia nossa chegada às Ruínas. Eram por volta de oito da noite e um foco de luz destacava os pingos da chuva ligeira. Lá estava o Sr. Rubens, que me oferece um simpático café caprichosamente adoçado. Ainda de pé no beiral da cozinha, todo ensopado da chuva, faço um breve relato da aventura. Deixo 10 dinheiros pelo estacionamento – e pela boa vontade implícita de servir de testemunha em caso de sumiço de um rapaz magrelo e seu cachorro marrom. Agradeço o café e volto pro carro, onde estava Tutuco deitado e encolhido no banco da frente. Não adiantou nada a manta especial para cachorro molhado no banco de trás. Tudo bem. Estamos vivos e agora é hora de voltar para casa. Que dia, ein, Tutuco. Obrigado, meu amigo. Você é um bom companheiro.